sexta-feira, março 23

O TEMA DA DOMINAÇÃO EM ALGUNS TEXTOS LITERÁRIOS

A MORTE DO FUNCIONÁRIO
(Anton Tcheckov)

Numa noite encantadora, o não menos encantador oficial de justiça Ivan Dmitritch Tcherviakov estava sentado na segunda fila da platéia, contemplando, pelo binóculo, "Os Sinos de Corneville". Sentia-se no cúmulo da bem-aventurança. Mas, de repente... É muito comum encontrar-se, nos contos, este "mas, de repente". Os autores têm razão: a vida é tão cheia de coisas inesperadas! Mas, de repente, seu rosto enrugou-se, os olhos contraíram-se, parou a respiração... afastou o binóculo, inclinou-se e... atchim!!! Espirrou, conforme estão vendo. Não é proibido espirrar, seja a quem for e onde for. Espirram os mujiques, os chefes de polícia e, às vezes, os próprios conselheiros-privados. Todos espirram. Tcherviakov não ficou sequer encabulado, enxugou-se com um lencinho e, como pessoa educada, espiou ao redor, para ver se havia incomodado alguém com seu espirro. Chegou-lhe então a vez de ficar perturbado. Viu que um velhinho, sentado na frente, na primeira fileira, enxugava meticulosamente a calva e o pescoço com a luva, murmurando algo. E Tcherviakov reconheceu, naquele velhinho, o general civil Brizjalov, do Departamento da Viação.
- Eu o molhei! - pensou Tcherviakov. - Não é meu chefe, mas apesar de tudo, não fica bem. Devo desculpar-me.
Tossiu, inclinou o busto para frente e murmurou ao ouvido do general:
- Desculpe, Vossa Excelência, eu o borrifei... foi sem querer...
- Não faz mal, não tem importância...
- Perdoe-me, pelo amor de Deus... Realmente, foi sem querer!
- Ah, sente-se, por favor! Deixe-me ouvir a música!
Tcherviakov ficou perturbado, sorriu estupidamente e pôs-se a olhar para o palco. Mas, por mais que olhasse, não sentia a primitiva bem-aventurança. Começou a atormentar-se de inquietação. No intervalo, aproximou-se de Brizjalov, caminhou um pouco para um lado e outro, perto dele, e, vencendo finalmente a timidez, balbuciou:
- Eu o borrifei, Vossa Excelência... Desculpe... Com efeito... eu... não é que...
- Ah, não se preocupe... Eu até já esqueci e o senhor está sempre falando nisso! - disse o general e moveu com impaciência o lábio inferior.
"Diz que esqueceu, mas há maldade em seus olhos", pensou
Tcherviakov, olhando desconfiado para o general. "Nem sequer fala sobre o caso. Seria preciso explicar-lhe que eu não quis, absolutamente... que se trata de uma lei da natureza. Senão, vai pensar que eu quis cuspir nele. Se não pensar assim agora, chegará a essa conclusão mais tarde!...".
Em casa, Tcherviakov relatou à mulher a falha cometida. Pareceu-lhe que ela encarou o ocorrido com demasiada leviandade. Teve um susto, mas se acalmou, ao saber que Brizjalov pertencia a outra repartição.
- Mesmo assim - disse ela - você deve ir lhe pedir desculpas. Senão, vai pensar que você não sabe se comportar em público!
- Isso mesmo! Eu já me desculpei, mas ele se portou de modo estranho... Não disse uma palavra razoável, sequer. Além disso, não houve oportunidade de conversar.
No dia seguinte, Tcherviakov envergou seu novo uniforme de gala, cortou o cabelo e foi à casa de Brizjalov, para se explicar... Entrando na sala de recepção, viu lá muitos solicitantes e, no meio destes, o próprio general, que já iniciara o recebimento das solicitações. Depois de interrogar alguns dos presentes, o general dirigiu o olhar para Tcherviakov.
Se o senhor se recorda, Vossa Excelência, ontem, no "Arcádia" - começou a relatar o oficial de justiça - eu espirrei e... involuntariamente, o borrifei... Des...
- Que tolice... Vá com Deus! E o senhor, que deseja? - perguntou o general, dirigindo-se já a outro solicitante.
"Não quer falar!", pensou Tcherviakov, empalidecendo. "Quer dizer que está zangado... Não, isso não pode ficar assim... vou-lhe explicar...".
Quando o general acabou de atender o último solicitante e dirigia-se já para o interior da casa, Tcherviakóv deu um passo em sua direção, murmurando:
- Vossa Excelência! Se me atrevo a incomodar Vossa Excelência, é justamente, posso dizer, sob o impulso do arrependimento!... Não foi de propósito, o senhor não pode ignorá-lo!
O general fez cara de choro e sacudiu a mão.
- O senhor está simplesmente zombando de mim! - disse, desaparecendo atrás da porta.
"Que zombaria pode haver nisso?", pensou Tcherviakov. "Não se trata de zombaria! É general, mas não pode compreender isso! Se assim é, não vou me desculpar mais perante esse fanfarrão! Diabo que o carregue! Vou escrever-lhe uma carta, mas não o procurarei mais pessoalmente! Juro por Deus!".
Assim pensava Tcherviakov, a caminho de casa. No entanto, não escreveu aquela carta ao general. Ficou pensando, pensando, mas não conseguiu redigi-la. Foi preciso ir explicar-se pessoalmente, no dia seguinte.
- Ontem eu vim incomodar Vossa Excelência - balbuciou, quando o general dirigiu para ele o olhar interrogador - mas não foi para zombar do senhor, conforme se dignou a dizer. Eu estava-me desculpando porque, ao espirrar, borrifei-o... mas, nem pensei em zombaria. Como poderia ousá-lo? Se formos zombar, quer dizer que não haverá, então, qualquer respeito... pelas pessoas...
- Fora daqui! - vociferou de repente o general, que se tornara azul e tremia com todo o corpo.
- O quê? - perguntou, num murmúrio Tcherviakov, empalidecendo de espanto.
- Fora daqui! - repetiu o general, batendo os pés.
Algo se rompeu na barriga de Tcherviakov. Recuou para a porta, sem ver, sem ouvir coisa alguma, saiu para a rua e caminhou lentamente...
Chegando maquinalmente em casa, deitou-se no divã, sem tirar o uniforme de gala e... morreu.

(1883)
"A Dama do Cachorrinho e outros contos"
Trad. Boris Schnaiderman
ED. Max Limonad, 1986.

PAMONHA
(Anton Tcheckov)

Convidei há dias para o meu escritório a governanta de meus filhos, Iúlia Vassílievna. Era preciso acertar as contas.
- Sente-se, Iúlia Vassílievna! - disse - Vamos fazer as contas. Com certeza, está precisando de dinheiro e a senhora‚ tão cerimoniosa que não pede sozinha... Bem... ficou ajustado entre nós que seriam trinta rublos por mês...
- Quarenta...
- Não, Trinta... Eu tenho anotado... Sempre paguei trinta rublos às governantas...Bem, a senhora residiu aqui durante dois meses...
- Dois meses e cinco dias...
- Dois meses exatos... Anotei assim. Quer dizer que tem a receber sessenta rublos... Descontando nove domingos... a senhora, realmente, não deu aula ao Kólia nos domingos, mas apenas passeou com ele... E mais três feriados...
Iúlia Vassílievna ficou vermelha e pôs-se a puxar uma franja do vestido, mas... não disse palavra!...
- Três feriados... quer dizer que temos a descontar doze rublos... Kólia esteve doente quatro dias e, por isso, não estudou... A senhora, então, deu aula apenas a Vária... Durante três dias, a senhora teve dor de dente e minha mulher dispensou-a das aulas da tarde... Doze e sete são dezenove. Descontando... ficam... hum... quarenta e um rublos... Certo?
O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou congestionado e nublou-se. Começou a tremer-lhe o queixo. Tossiu nervosa, assoou-se, mas... sem dizer palavra!
- Na noite de Ano Bom, a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. São menos dois rublos... A xícara é uma relíquia, custa mais caro, mas... vá lá, Deus que a perdoe! Nossas coisas já se têm estragado em tantas ocasiões! Depois, devido a uma falta de atenção por parte da senhora, Kólia trepou numa árvore e rasgou o paletozinho... São menos dez... A arrumadeira, em consequência igualmente de uma distração sua, roubou os sapatos de Vária. A senhora deve cuidar de tudo. Está contratada e recebe ordenado. Quer dizer que devemos tirar mais cinco... No dia dez de janeiro, a senhora levou emprestados de mim dez rublos...
- Eu não levei! - murmurou Iúlia Vassílievna.
- Mas está anotado aqui!
- Está bem...seja.
- De quarenta e um, tira-se vinte e sete, sobram quatorze...
Os olhos da governanta encheram-se de lágrimas... O suor apareceu sobre seu narizinho comprido e gracioso. Pobre menina!
- Eu só levei uma vez - disse ela, a voz trêmula. - Levei três rublos de sua senhora... Não levei mais nada...
- E agora? Imagine, eu nem anotei isso! Tirando três de quatorze, fica onze... Aqui está o seu dinheiro, minha cara! Três... tres, três... um e um... Queira receber!
Dei-lhe os onze rublos... ela os tomou e enfiou-os no bolso, com dedos trêmulos.
- Merci - murmurou.
Levantei-me de um salto e pus-me a andar pelo quarto. O furor apossou-se de mim.
- Mas, por que este merci? - perguntei.
- Pelo dinheiro...
- Mas eu a assaltei, diabos, eu lhe roubei dinheiro! Por que merci?
- Noutras casas, cheguei a não receber nada...
- Não recebeu nada! Compreende-se! Eu caçoei da senhora, dei-lhe uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os seus oitenta rublos! Estão preparados para a senhora, neste envelope! Mas, como é que se pode ser moleirona assim? Porque não protesta? Por que fica quieta? Pensa que, neste mundo, pode-se não ser audacioso? Pensa que se pode ser tão pamonha?
Ela esboçou um sorriso azedo e eu li em seu rosto: "Pode-se sim!".
Pedi-lhe perdão por aquela lição cruel e dei-lhe, para seu grande espanto, os oitenta rublos. Pôs-se a balbuciar merci com timidez e saiu do escritório. Acompanhei-a com o olhar e pensei:
- É fácil ser forte neste mundo!
(1883)
"A Dama do Cachorrinho e outros contos"
Trad. Boris Schnaiderman
ED. Max Limonad, 1986.

UM APÓLOGO
(Machado de Assis)

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.

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Indico, ainda, a leitura do conto "O inimigo", também do Tcheckov

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